
Muitas pessoas ficam indignadas quando um filme aborda questões políticas, alegando que o cinema deveria ser um espaço de entretenimento puro, livre de ideologias. Elas não poderiam estar mais erradas.
A ideia de que um filme pode ser totalmente imparcial e livre de política é uma ilusão. Todo filme, independente do gênero, do tema ou da intenção do diretor, carrega uma carga ideológica e reflete uma visão de mundo.
Isso ocorre porque a arte é, por natureza, uma expressão humana, e os artistas sempre inserem seus valores, crenças e perspectivas em suas obras.
Ao longo da história do cinema, diversos exemplos mostram como a neutralidade é uma impossibilidade, seja em filmes claramente políticos ou em produções que tentam se afastar dessa discussão.
O Início do Cinema Político: Os Irmãos Lumière e a Classe Trabalhadora
O cinema nasceu como um registro do cotidiano, mas desde suas primeiras imagens, ele já carregava um viés político.
Quando os irmãos Lumière exibiram A Saída da Fábrica Lumière em Lyon (1895), não estavam apenas mostrando trabalhadores deixando um local de produção; estavam, conscientemente ou não, capturando a realidade social da época, marcada pela ascensão da Revolução Industrial e pelas condições da classe operária.
A escolha do que filmar e de quem registrar não era neutra. Os Lumière poderiam ter filmado a burguesia em seus jantares luxuosos, mas optaram por uma fábrica.
Essa decisão, por mais que não tenha sido uma manifestação política explícita, reflete um recorte da sociedade que coloca a classe trabalhadora em evidência.
A imagem de dezenas de trabalhadores saindo da fábrica, com suas roupas simples e expressões de cansaço, mostra a dura rotina do proletariado, um reflexo da exploração industrial do final do século XIX.
Além disso, o próprio ato de filmar a vida real já era, de certa forma, um posicionamento político. Em um tempo onde a arte ainda era dominada pelas elites, a possibilidade de registrar o cotidiano das massas ajudou a criar um novo olhar sobre a sociedade.
Mesmo sem diálogos ou narrativas elaboradas, o cinema dos Lumière estabeleceu uma base para o que, mais tarde, se tornaria o cinema político como conhecemos hoje.
A Arte Como Expressão de uma Visão de Mundo
O cinema, assim como qualquer outra forma de arte, é criado por indivíduos que possuem experiências, valores e perspectivas particulares. Quando um diretor decide como uma cena será enquadrada, como os personagens serão retratados, quais serão os temas abordados e qual mensagem será transmitida, ele está fazendo escolhas que são inevitavelmente políticas.
Nenhuma arte surge em um vácuo ideológico, pois é atravessada pelas influências culturais, sociais e históricas de seu tempo.

Por exemplo, um filme de guerra pode optar por retratar os soldados como heróis inquestionáveis ou pode questionar a própria guerra como um erro. Ambas são posturas políticas, pois refletem diferentes compreensões sobre o papel dos conflitos armados e suas consequências. Até mesmo a escolha de não abordar a guerra sob um viés crítico é uma declaração, pois contribui para a normalização da violência e da militarização.
Essa relação entre cinema e ideologia se manifesta não apenas na temática central de uma obra, mas também em suas sutilezas. O modo como um personagem de determinada classe social é retratado, o protagonismo dado a certos grupos e a maneira como relações de poder são construídas são elementos que revelam muito sobre a intencionalidade de um filme e sobre as visões de mundo que ele propaga.
Filmes que Assumem sua Politicidade
Algumas produções são abertamente políticas e se posicionam de maneira clara sobre questões sociais e ideológicas. Ao longo da história do cinema, diversos cineastas usaram suas obras para criticar regimes opressivos, denunciar injustiças e expor desigualdades.
Tempos Modernos (1936), de Charlie Chaplin, é um exemplo clássico de como um filme pode criticar diretamente o sistema capitalista e suas consequências na vida dos trabalhadores.

O filme utiliza humor e críticas visuais para mostrar a desumanização da linha de produção industrial e a alienação do proletariado. Em uma das cenas mais icônicas, o personagem de Chaplin é tragado por uma esteira de produção, simbolizando como os trabalhadores são apenas mais uma engrenagem em um sistema que visa exclusivamente o lucro.
Outro exemplo claro é Parasita (2019), de Bong Joon-ho, que expõe a desigualdade social e as relações de classe por meio da história de uma família pobre que se infiltra na casa de uma família rica.

O filme demonstra como o sistema econômico perpetua a desigualdade e como os menos privilegiados estão presos a uma estrutura que dificulta sua ascensão social. A obra faz uma crítica ácida ao mito da meritocracia e mostra que a ascensão de poucos ocorre às custas da exploração da maioria.
No Brasil, o cinema também tem uma forte tradição política. Filmes do Cinema Novo, como Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, expuseram as dificuldades enfrentadas pelas camadas mais pobres da sociedade.

Mais recentemente, produções como Tropa de Elite (2007) e Aquarius (2016) trouxeram debates sobre violência policial e especulação imobiliária, respectivamente.
A Ideologia Presente Mesmo em Filmes que "Evitam" Política
Mesmo filmes que tentam se apresentar como "apolíticos" carregam uma carga ideológica. Produções de super-heróis, por exemplo, frequentemente reforçam a ideia de justiça baseada no vigilantismo, onde indivíduos tomam para si a responsabilidade de punir vilões fora do sistema judicial.
Isso é uma visão política sobre como a justiça deve funcionar.
Filmes de guerra que retratam soldados como heróis e omitem os horrores do conflito também fazem uma escolha política. Top Gun (1986), por exemplo, é frequentemente visto como um filme de propaganda militar que glorifica o exército e incentiva o alistamento, reforçando a ideia de que os EUA são uma força do bem no mundo.

Até mesmo animações infantis trazem mensagens ideológicas. O Rei Leão (1994), por exemplo, pode ser interpretado como uma narrativa sobre a justificação da monarquia hereditária, enquanto Os Incríveis (2004) levanta questões sobre meritocracia e o papel dos "talentosos" na sociedade.
A Falsa Noção de Neutralidade
Muitos diretores e estúdios tentam argumentar que seus filmes são "neutros" para evitar polêmicas e ampliar seu apelo ao público. No entanto, ao tentar apagar a política de um filme, o que realmente está sendo feito é a naturalização de certas ideias já estabelecidas na sociedade.
Christopher Nolan, por exemplo, costuma afirmar que seus filmes não possuem uma mensagem política explícita, mas obras como Oppenheimer (2023) contradizem essa afirmação.
O filme é um manifesto anti-nuclear que expõe a fragilidade, a inconsistência e a estupidez humana por meio das escolhas estilísticas em torno do protagonista, seus pesadelos e o mundo ao seu redor.

Outro exemplo mais geral, um filme que representa uma sociedade onde apenas homens ocupam posições de poder pode alegar que não está fazendo uma declaração política, mas, na verdade, está reforçando uma visão conservadora do mundo.
A ausência de representação de minorias também é uma escolha política, pois invisibiliza certos grupos e reforça a ideia de que apenas determinadas pessoas merecem protagonismo. E nem precisamos ir longe também, só olhar como os filmes de Hollywood geralmente fazem o mundo ser voltado a Nova York. Sendo assim, potencializando a ideia do imperialismo americano.
Um caso notável foi Mulher-Maravilha (2017), que, apesar de ser um filme de super-herói, gerou debates sobre feminismo e empoderamento feminino simplesmente por colocar uma mulher no centro da narrativa de ação. O filme não precisava ter um discurso explícito para ser considerado político.
A Hipocrisia de Quem Reclama de "Filmes Políticos"
Muitas das pessoas que se incomodam quando um filme aborda temas políticos são as mesmas que consomem produções com mensagens ideológicas alinhadas a suas próprias crenças sem questioná-las.
Um exemplo disso é a reação a filmes que criticam desigualdades sociais ou opressões históricas: esses são acusados de serem "panfletários", enquanto filmes que exaltam valores tradicionais são vistos como "naturais".
Esse duplo padrão fica ainda mais evidente com o uso de termos como "woke" e "lacração". Muitas vezes, essas expressões são usadas apenas para deslegitimar obras que apresentam diversidade ou discutem temas progressistas.

O mesmo público que chama filmes como Pantera Negra (2018) ou A Pequena Sereia (2023) de "lacradores" não enxerga qualquer problema em produções que reforçam valores conservadores. Isso demonstra como a luta pela "neutralidade" no cinema é, na verdade, uma tentativa de manter uma visão de mundo hegemônica sem ser contestada.
Conclusão
Não existe cinema sem política. Todo filme, ao fazer escolhas narrativas, estéticas e temáticas, reflete uma visão de mundo e, consequentemente, carrega uma mensagem ideológica. A tentativa de fazer um filme "neutro" apenas reforça o status quo e perpetua valores dominantes sem questioná-los. Compreender que toda obra carrega uma dimensão política é essencial para analisar criticamente o impacto do cinema na sociedade e na forma como enxergamos o mundo.

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Parabéns Sr.Obsoleto ✨