Dos Pixels ao Enredo: A Narrativa nos Games

Desde os primórdios da história dos video-games, a narrativa tem sido um elemento essencial na forma como nos relacionamos com essa mídia. Embora, inicialmente, os jogos eletrônicos tenham sido concebidos apenas como formas de entretenimento, sua evolução permitiu a incorporação de elementos cinematográficos e literários, criando experiências imersivas e impactantes.

Hoje, títulos como Red Dead Redemption, The Last of Us e Halo demonstram como a narrativa se tornou um fator determinante para o engajamento e a identidade das franquias. Mas como esse processo ocorreu? De que forma os videogames passaram de simples passatempos a formas de arte interativa?

O INÍCIO: OS PRIMEIROS PASSOS DA INDÚSTRIA

Nos anos 1950, os primeiros experimentos com jogos eletrônicos tinham propósitos acadêmicos e militares, utilizando inteligência artificial em simulações de xadrez e táticas de guerra. Na década seguinte, com o avanço da tecnologia, surgiram jogos voltados ao entretenimento, como Tennis for Two (1958), que marcou um dos primeiros usos recreativos da interação eletrônica.

A verdadeira popularização dos jogos eletrônicos ocorreu na década de 1970, com o crescimento dos fliperamas e consoles domésticos.

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Jogos como Pong, Space Invaders e Pac-Man introduziram elementos narrativos rudimentares, como pequenos contextos para situar os jogadores dentro das regras e do universo do jogo. Levando ao pé da letra, a animação de morte nesses jogos já é uma cutscene.

A CONSOLIDAÇÃO DA NARRATIVA NOS GAMES

O avanço da tecnologia possibilitou a criação de jogos com universos mais complexos, permitindo que os desenvolvedores expandissem a imersão e o envolvimento dos jogadores nas histórias. Esse crescimento gradual da narrativa nos games começou com títulos pioneiros que introduziram elementos inovadores de interatividade e construção de mundo.

Em 1979, Adventure, desenvolvido por Warren Robinett para o Atari 2600, marcou um divisor de águas no design narrativo dos videogames.

Inspirado pelos jogos de exploração baseados em texto, como Colossal Cave Adventure, Robinett conseguiu adaptar esse estilo para uma interface gráfica rudimentar, permitindo que os jogadores explorassem um ambiente interativo em busca de um cálice mágico.

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Adventure (1979)

Esse título trouxe inovações notáveis, como um mundo aberto dentro das limitações técnicas da época, desafios interativos que exigiam lógica e experimentação e a inclusão dos primeiros easter eggs da história dos videogames.

O jogo demonstrou que era possível contar histórias dentro do contexto eletrônico, um conceito que influenciaria gerações futuras de desenvolvedores.

A Década de 1980

Durante os anos 1980, a popularização dos computadores domésticos, como o Apple II e o Commodore 64, ampliou drasticamente as possibilidades narrativas nos videogames.

Foi nessa década que surgiram os primeiros RPGs eletrônicos, inspirados diretamente em jogos de mesa como Dungeons & Dragons. Akalabeth: World of Doom (1980), criado por Richard Garriott, é um dos primeiros exemplos desse gênero, servindo de protótipo para a aclamada série Ultima.

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Ultima II: The Revenge of the Enchantress (1982)

Ele introduziu elementos essenciais como exploração de masmorras, evolução de personagens e objetivos não lineares, permitindo ao jogador moldar sua jornada de maneira única. Esse tipo de abordagem estabeleceu as bases para RPGs mais complexos, como Final Fantasy (1987) e The Legend of Zelda (1986), que transformaram os jogos eletrônicos em verdadeiras jornadas interativas, cada vez mais ricas em enredo e desenvolvimento de personagens.

A Disseminação das Cutscenes

Um dos grandes marcos desse período foi a introdução das cutscenes, cenas cinematográficas que auxiliavam na transição entre momentos da jogabilidade e o desenvolvimento da trama.

Antes disso, a maioria dos jogos dependia exclusivamente de textos ou breves telas estáticas para contextualizar os acontecimentos. Com a chegada de jogos como Donkey Kong (1981), as cutscenes começaram a desempenhar um papel fundamental na narrativa dos games.

No título da Nintendo, pequenas animações ilustravam a captura de Pauline por Donkey Kong, estabelecendo a motivação para o protagonista, Jumpman (mais tarde conhecido como Mario), embarcar em sua missão de resgate. Esse conceito rudimentar pavimentou o caminho para narrativas mais dinâmicas no futuro.

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Donkey Kong (1981)

Jogos como Batman (NES, 1989) incorporaram essas animações para aprofundar a história e melhorar a experiência imersiva dos jogadores. Entretanto, um dos títulos mais importantes nesse avanço foi Ninja Gaiden (NES, 1988).

Diferente da maioria dos jogos da época, que utilizavam textos simples para apresentar seus enredos, Ninja Gaiden trouxe uma abordagem cinematográfica diferente do que estavam acostumado.

O jogo utilizava cenas entre as fases, com diálogos e enquadramentos inspirados no cinema, para contar uma história envolvente sobre vingança e destino. Essa técnica ajudou a estabelecer um novo padrão na narrativa dos videogames, influenciando diretamente a forma como as histórias passaram a ser contadas nos anos seguintes.

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Ninja Gaiden (1989)

A adoção desse formato fez com que os jogos eletrônicos deixassem de ser apenas desafios de habilidade e se transformassem em experiências mais profundas e emocionantes.

Segundo estudiosos da mídia interativa, essa abordagem facilitou a transição dos videogames de simples experiências lúdicas para formas narrativas mais sofisticadas. O impacto desse avanço pode ser sentido até hoje, com jogos modernos adotando cada vez mais técnicas cinematográficas para contar histórias de maneira imersiva e interativa.

NOVOS GÊNEROS, DIFERENTES FORMAS DE CONTAR HISTÓRIAS

Com o avanço da tecnologia e a popularização dos computadores nos anos 1990, surgiram novas abordagens narrativas dentro dos jogos eletrônicos.

O gênero point-and-click, amplamente difundido na década, foi um dos primeiros a priorizar a narrativa em detrimento da jogabilidade tradicional. Desenvolvido principalmente por estúdios como LucasArts e Sierra, esse estilo de jogo valorizava a resolução de quebra-cabeças e a interação com personagens e ambientes, criando experiências ricas em enredo.

Títulos como Monkey Island, Full Throttle e Day of the Tentacle apresentavam roteiros envolventes, cheios de humor e diálogos bem escritos, permitindo que os jogadores influenciassem a história por meio de suas escolhas e interações. Essa abordagem fortaleceu a ideia de que os videogames podiam contar histórias tão envolventes quanto os filmes, levando o gênero a se tornar um dos mais respeitados em termos de narrativa interativa.

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The Secret of Monkey Island (1990)

Enquanto isso, os jogos de tiro em primeira pessoa (FPS) também se tornaram extremamente populares, inicialmente com uma abordagem focada na ação frenética. Títulos como Wolfenstein 3D (1992) e Doom (1993) revolucionaram a indústria ao introduzir mecânicas de jogabilidade rápidas e intensas.

No entanto, esses primeiros FPS eram mais voltados para a jogabilidade do que para a narrativa. Os enredos eram simples, muitas vezes limitados a uma justificativa básica para o combate incessante.

Com o passar dos anos, no entanto, os jogos de tiro começaram a evoluir e incorporar elementos narrativos mais sofisticados. Half-Life (1998), desenvolvido pela Valve, foi um divisor de águas para o gênero ao integrar a história diretamente à jogabilidade, sem o uso excessivo de cutscenes ou interrupções. A narrativa era contada por meio do ambiente, dos diálogos dos NPCs e dos acontecimentos ao redor do jogador, criando uma experiência muito mais envolvente.

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Halo Combat Evolved (2001)

Outro grande exemplo foi Halo: Combat Evolved (2001), que trouxe uma mitologia rica e personagens cativantes, transformando-se em um dos jogos mais influentes da década seguinte.

Escolhas que Moldam o Mundo

Mais a frente, surgiu o conceito de narrativa emergente. Diferente das histórias pré-determinadas, a narrativa emergente ocorre quando o jogador cria sua própria experiência a partir das mecânicas do jogo. Esse fenômeno se tornou especialmente evidente com a popularização dos jogos de mundo aberto e RPG.

O gênero RPG sempre foi um dos principais responsáveis por expandir as possibilidades narrativas nos videogames. Com a evolução da tecnologia, esses jogos passaram a oferecer experiências cada vez mais imersivas, onde as escolhas do jogador influenciam significativamente o enredo e a progressão da história.

Diferente de outros gêneros que seguem roteiros fixos, os RPGs modernos possibilitam que o jogador determine o curso dos acontecimentos dentro do jogo. Títulos como Fallout, The Elder Scrolls e Star Wars: Knights of the Old Republic popularizaram esse modelo ao público geral, fugindo de um nincho, oferecendo múltiplos caminhos, consequências diversas e finais variados.

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Fallout 4 (2015)

Em Fallout: New Vegas, por exemplo, o jogador pode se aliar a diferentes facções, modificar a estrutura política da região e até mudar o destino de personagens importantes. Essa liberdade narrativa aumenta o fator replay, pois cada nova jogada pode gerar um desfecho completamente diferente.

O Impacto da Personalização Narrativa nos Games

Além das escolhas diretas na história, os RPGs oferecem uma profunda personalização dos personagens, permitindo que o jogador defina sua aparência, habilidades e até mesmo suas motivações morais. Essa abordagem faz com que cada jogador tenha uma experiência única, tornando a narrativa mais envolvente e conectada com suas próprias decisões.

Um excelente exemplo desse modelo é The Witcher 3: Wild Hunt, onde as escolhas de Geralt de Rivia não apenas afetam o desfecho da história, mas também modificam relações interpessoais e o estado do mundo ao seu redor. Pequenas decisões ao longo da campanha podem resultar em reviravoltas inesperadas, tornando o jogo mais dinâmico e imprevisível.

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The Witcher 3: Wild Hunt (2015)

Simuladores e a Construção de Histórias Pessoais

Paralelamente aos RPGs, os simuladores de vida como The Sims também expandiram as possibilidades narrativas. Diferente dos jogos tradicionais, esses títulos não possuem um enredo pré-definido, mas sim um ambiente onde os jogadores podem criar suas próprias histórias.

Em The Sims, cada jogador constrói personagens, laços familiares, relacionamentos e até mesmo dramas pessoais, tornando-se o próprio roteirista de sua experiência. Esse modelo demonstra que a narrativa nos videogames pode ir além de histórias escritas por desenvolvedores, dando total controle ao jogador sobre sua jornada.

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The Sims 2 (2004)

O Futuro da Narrativa Interativa nos Games

Com a evolução contínua da inteligência artificial e do poder de processamento dos consoles e PCs, os RPGs e jogos baseados em escolhas tendem a se tornar ainda mais sofisticados. Sistemas narrativos adaptativos, como os vistos em Detroit: Become Human e Baldur’s Gate 3, apontam para um futuro onde as histórias não apenas reagem às decisões do jogador, mas se moldam organicamente a elas, criando experiências altamente imersivas e personalizadas.

Além disso, títulos como Red Dead Redemption 2 e Cyberpunk 2077 demonstram como a narrativa linear pode coexistir com elementos emergentes, permitindo que eventos espontâneos e escolhas influenciem o desenrolar da trama. Esses jogos combinam a estrutura tradicional com uma liberdade que dá mais agência ao jogador, tornando cada jornada única.

Entretanto, um dos exemplos mais impactantes da evolução narrativa nos games é The Last of Us Part II. O jogo da Naughty Dog não apenas apresenta um excelente enredo, mas inova a forma como a história é contada, indo além das convenções do storytelling tradicional.

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The Last Of Us Part II (2020)

Desde o início, The Last of Us Part II faz escolhas narrativas ousadas, quebrando a expectativa do jogador e estabelecendo um tom de imprevisibilidade e desconforto. A brutal morte de um personagem logo nas primeiras horas do jogo não apenas serve como um catalisador para a jornada de vingança de Ellie, mas também subverte a estrutura clássica de um "herói" e um "vilão". Em vez de apresentar um conflito maniqueísta, o jogo obriga o jogador a habitar diferentes perspectivas.

A grande inovação narrativa de The Last of Us Part II está na maneira como ele força o jogador a vivenciar a história por dois ângulos distintos. A transição para o controle de Abby, a personagem inicialmente vista como antagonista, desafia a empatia do jogador ao desconstruir a noção de certo e errado. O game nos obriga a caminhar pelos sapatos de Abby, mostrando sua humanidade, seus traumas e suas perdas, da mesma forma que faz com Ellie.

O jogo eleva a narrativa a padrões morais mais contundentes que não dependem de você, e isso que torna marcante, pois diferente de um filme ou livro, estamos falando de uma experiência ativa, você está, querendo ou não, controlando ativamente aquela situação.

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Baldur's Gate 3 (2023)

O futuro da narrativa interativa nos games não se limita a escolhas binárias ou múltiplos finais, mas sim à construção de experiências que envolvam o jogador de maneira emocional e psicológica. Jogos como The Last of Us Part II e Red Dead Redemption 2 provam que os videogames não apenas adotam técnicas do cinema e da literatura, mas são uma forma de arte única, capaz de explorar histórias e emoções de maneiras que nenhum outro meio consegue alcançar.

CONCLUSÃO

A evolução das narrativas nos videogames reflete a transformação desse meio de entretenimento ao longo das décadas. Se antes os jogos eram vistos apenas como passatempos, hoje são reconhecidos como uma forma de arte interativa, capazes de contar histórias envolventes, provocar emoções e desafiar nossa percepção sobre a realidade.

Com avanços tecnológicos constantes, novas formas de narrativa continuam a surgir, expandindo ainda mais as possibilidades desse meio. Seja através de experiências lineares ou de mundos abertos, de jogos altamente roteirizados ou de histórias moldadas pelo jogador, o futuro dos games promete continuar inovando e redefinindo a maneira como contamos e vivenciamos histórias interativas.

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