Eisenstein e o Cinema Soviético Revolucionário


Após a Revolução Russa de 1917, o cinema soviético foi encarado como uma ferramenta fundamental para educar e politizar as massas. Lenin teria dito que “de todas as artes, o cinema é a mais importante”, e essa máxima guiou o desenvolvimento cinematográfico da União Soviética em seus primeiros anos. O foco era claro: criar uma linguagem visual nova, voltada à coletividade, ao espírito revolucionário e à construção de uma nova consciência social.

A Montagem como Estética e Ideologia & A Revolução na Tela

Nesse contexto, surge o conceito de montagem como eixo central da estética soviética. Ao contrário da narrativa linear tradicional do cinema ocidental, os cineastas soviéticos acreditavam que o sentido de um filme estava na justaposição de imagens. O choque entre planos diferentes criava ideias novas, algo que o espectador deveria experimentar intelectualmente e refletir sobre as metáfora estabelecidas, irei demonstrar mais a frente. Essa teoria foi levada a cabo por diretores como Lev Kuleshov, Dziga Vertov e, principalmente, Sergei Eisenstein.

Sergei Eisenstein foi o grande nome dessa fase. Suas obras possuem um peso maior dentro da história soviética, principalmente por ter alguns de seus principais filmes como um pedido comissionado pelo governo soviético para celebrar o aniversário de alguns eventos importantes para a nação, como a revolta naval de 1905 e a revolução de outubro de 1917. Explicarei mais abaixo.

A Greve (1925)

A Greve é a estreia de Eisenstein como diretor de longas-metragens. O filme narra uma greve dos operários de uma fábrica e a subsequente repressão violenta promovida pelos patrões e pela polícia. Desde o início, Eisenstein recusa o protagonismo individual: não há heróis, apenas a coletividade dos trabalhadores como sujeito da narrativa. A massa operária não é pano de fundo, mas o verdadeiro protagonista.

O aspecto mais marcante do filme está na maneira como Eisenstein transforma a montagem em ferramenta ideológica. A sequência mais célebre, e uma das mais emblemáticas da história do cinema, mostra a repressão policial sendo intercalada com cenas de gado sendo abatido em um matadouro. Essa justaposição constrói algo que apenas o cinema consegue, uma metáfora visual: os trabalhadores são apresentados como carne para o abate.

A montagem aqui não suaviza, ela confronta. Eisenstein propõe um cinema que exige reação, não contemplação. Ele acreditava que o espectador deveria ser desestabilizado, levado a pensar e sentir de forma ativa. Essa cena, em particular, obriga o público a associar diretamente a violência social à lógica do abate, transformando uma denúncia política em uma imagem quase visceral.

Além da montagem dialética, o filme utiliza composições visuais fortes, movimentos de câmera precisos e um ritmo que acelera à medida que a tensão se intensifica. Tudo é calculado para reforçar a mensagem revolucionária. A Greve já apresenta a base do pensamento cinematográfico de Eisenstein: o cinema como ferramenta de análise social, como provocação ideológica, como arte revolucionária.

O Encouraçado Potemkin (1925)

Talvez o filme mais conhecido de Eisenstein, O Encouraçado Potemkin (1925) dramatiza uma revolta naval real ocorrida em 1905, mas transforma o evento histórico em algo maior: um manifesto visual contra a opressão e uma celebração do poder coletivo. Mais do que uma reconstrução dos fatos, o filme propõe uma interpretação ideológica da revolta, onde a indignação dos marinheiros contra a autoridade czarista é apresentada como símbolo de um despertar revolucionário mais amplo.

O filme atinge seu auge na sequência da escadaria de Odessa, onde mais uma vez, uma cena de Eisenstein é amplamente considerada uma das mais influentes da história do cinema. Nela, soldados czaristas descem impiedosamente os degraus, disparando contra civis indefesos, mulheres, crianças, idosos, enquanto a montagem fragmenta a ação em cortes ritmados e simbólicos. O rosto apavorado de uma mãe, o carrinho de bebê despencando escada abaixo, a multidão em pânico, essa cena serviu como base e inspiração para muitos e muitos filmes lançados depois.

Ilustra com perfeição o conceito de “montagem de atrações”, formulado por Eisenstein: uma técnica em que cada imagem é construída para provocar choque, emoção e pensamento no espectador. Não se trata apenas de contar uma história, mas de manipular a forma para provocar uma reação política e sensorial.

A montagem cria significados não presentes nas imagens isoladas, mas emergentes da colisão entre elas, um verdadeiro discurso audiovisual. A escadaria de Odessa é o símbolo da opressão. Soldados que mal podemos ver os rostos atirando em civis inocentes (os quais nós claramente conseguimos ver seus rostos)

Outubro (1928)

Produzido para celebrar os 10 anos da Revolução de Outubro, Outubro (1928) é talvez o filme mais ousado e formalmente radical de Eisenstein. Longe de se contentar com uma narrativa linear, o diretor propõe uma verdadeira desconstrução da linguagem cinematográfica tradicional, mergulhando o espectador em uma sucessão de imagens carregadas de simbolismo e significado político. O objetivo não é apenas ilustrar a revolução, mas sim recriá-la como uma experiência sensorial e ideológica.

A sequência da tomada do Palácio de Inverno (marco simbólico da vitória bolchevique) é apresentada de maneira grandiosa, mas não documental. Eisenstein evita o realismo direto, preferindo a abstração visual e a metáfora. As imagens não apenas se sucedem, mas colidem, criando novas ideias a partir do confronto simbólico. Um exemplo marcante é o momento em que líderes religiosos são justapostos a ídolos pagãos e objetos inanimados, criando um comentário visual sobre a equivalência entre fé cega e opressão institucional.

Outro recurso recorrente no filme é o uso de repetições rítmicas e variações de enquadramento para intensificar significados, como na representação da estátua do czar, que aparece em fragmentos, simbolizando o colapso do poder autocrático. A câmera não apenas registra, mas toma partido, e cada corte é uma afirmação política.

Outubro é menos acessível que Potemkin ou A Greve, e essa dificuldade não é um acidente, mas um projeto: Eisenstein queria que o público pensasse, não apenas sentisse. Cada plano é carregado de intenção teórica. O filme não busca apenas comover, mas formar uma consciência crítica.

Estilo Cinematográfico de Eisenstein

A temática central do cinema soviético inicial, especialmente nos filmes de Eisenstein, gira em torno da coletividade. Não há heróis individuais, mas sim o povo como protagonista. Isso se opõe ao modelo clássico de Hollywood, centrado em personagens únicos e jornadas pessoais. Nos filmes de Eisenstein, a força está na massa, na multidão organizada, na ação coletiva. Os trabalhadores, os marinheiros, os camponeses são os verdadeiros agentes da transformação histórica.

Além disso, Eisenstein foi pioneiro na experimentação formal. A montagem intelectual, por ele proposta, buscava provocar o espectador, desestabilizar sua percepção e engajá-lo ativamente no processo de compreensão. O cinema deixa de ser passivo e se torna dialético. A colisão entre imagens cria uma síntese — uma nova ideia, uma nova consciência. Não se trata apenas de mostrar: trata-se de fazer pensar.

O cinema soviético também rejeita o realismo ingênuo. Mesmo quando trata de eventos históricos, os estiliza. Em “A Greve” (1925), por exemplo, Eisenstein compara a repressão aos operários com imagens documentais de um boi sendo abatido. É uma metáfora violenta e clara, que usa o poder da associação visual para comunicar indignação. Essa ousadia formal foi característica do período e tornou o cinema soviético uma vanguarda estética.

Influência Mundial e Fim da Vanguarda

Esses filmes, embora propagandísticos em muitos aspectos, não eram simplistas. Pelo contrário, traziam uma sofisticação técnica e teórica que influenciaria o cinema mundial. A Nouvelle Vague francesa, o neorrealismo italiano, o cinema novo brasileiro — todos, em alguma medida, beberam da fonte soviética.

Contudo, esse período fértil não durou muito. Com o endurecimento do regime de Stalin, o cinema passou a ser rigidamente controlado. A experimentação deu lugar ao “realismo socialista”, que priorizava narrativas simples, heróis idealizados e finais edificantes. A arte deveria servir ao Estado, e o espaço para ousadia se reduziu drasticamente. Eisenstein, inclusive, enfrentou dificuldades com a censura e teve projetos interrompidos ou mutilados.

Legado de Eisenstein

Ainda assim, sua obra permanece como um marco incontornável. Seu legado está na convicção de que a forma é política, que a maneira como se organiza uma imagem diz tanto quanto seu conteúdo. Eisenstein enxergava o cinema como uma linguagem viva, capaz de moldar pensamento, afetos e ideologias.

Conclusão: O Cinema como Revolução

O início do cinema soviético foi, portanto, uma época de invenção, de tensão criativa e de fé no poder transformador da imagem. Não se tratava de entreter: tratava-se de intervir. E, por isso mesmo, esses filmes continuam relevantes. Eles nos lembram que o cinema pode ser mais do que narrativa — pode ser linguagem, pode ser política, pode ser revolução.


Gostaria de ver mais conteúdo parecido? Siga a página no Instagram clicando aqui!

Confira mais:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Rolar para cima