A Mídia Física é mais importante do que você imagina.

A antítese do efêmero.

Outro dia ouvi The Beatles (1968), ou como conhecemos, O Álbum Branco, o 10° álbum de estúdio da banda mais famosa do planeta. Eu já tinha ouvido esse disco milhares de vezes, sabia todas as músicas de cor. Mas nesse dia em específico, pareceu diferente. Eu estava ouvindo pela primeira vez em vinil, e de repente, o mesmo disco parecia mais vivo. De alguma forma, pareceu ser muito melhor do que já era, e no final, eu senti como se eu estivesse realmente “ouvindo” o disco pela primeira vez.

Ao refletir sobre essa sensação que eu tive, percebi que não era só o som (embora ele tenha feito diferença), o que mudou mesmo foi o jeito de ouvir. O simples ato de tirar o disco da capa dupla que eu tinha acabado de comprar, observar as fotos, colocar no prato e abaixar a agulha transformou a escuta em algo mais ritualístico. Estava indo além da maneira quase “automática” que eu ouvia em plataformas de streaming.

Materialidade e Atenção Plena

O que aconteceu na real, nasceu do contato físico. Durante muito tempo, consumir música, filmes e livros significava lidar com objetos concretos, e o ato de comprar um CD ou DVD envolvia expectativa do produto, esforço do dinheiro ou tempo de ir até a loja, e até frustração ocasionada por N fatores. Mas quando finalmente chegava o momento, o objeto virava parte da experiência.

Envolvia-se uma relação sensorial entre corpo e mídia, cuja manipulação implica uma cadeia de ações conscientes que vai desde escolher o título, abrir a caixa, observar a capa, posicionar o disco, navegar pelos menus, e assim, você cria um elo de um ritual que organiza o tempo e o seu foco, se tornando extremamente presente naquele momento.

Da mesma forma ler um livro físico envolve a interação direta. Estudos sobre leitura, por exemplo, mostram que o texto impresso permite uma postura relaxada com o objeto, e estabelece um vínculo mais forte: “A tela, ao separar o texto das mãos do leitor, impede o contato afetivo entre leitor e livro. As marcas feitas manualmente nos textos impressos no novo suporte são intermediadas pelo teclado e pelo mouse” (GHAZIRI, 2009).

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Imagem: ebookmaker.AI

Hoje o acesso é rápido e prático, e um clique resolve tudo. Mas essa praticidade também rouba peso da experiência, já que corpo já não participa do mesmo jeito, logo, não há textura (apenas do dispositivo), cheiro, desgaste e nada que afirme que aquilo já foi um recanto de vivências. E sem isso, a memória também se enfraquece.

A Velocidade do Digital

O streaming, por exemplo, facilita a vida, mas também estimula o consumo automático. Quase sempre ouvimos distraídos, pulando músicas, abandonando discos pela metade, deixando playlists rodarem em segundo plano, e isso eu falo por experiência própria. Quando tudo está disponível ao mesmo tempo, nada parece especial.

É aí que a mídia física faz diferença, ela nos liga à responsabilidade da escolha. Pegar um álbum e ouvi-lo de ponta a ponta é um compromisso. Esse limite reorganiza o tempo e nos devolve foco.

Como aponta Schwartz (2004), o paradoxo da escolha é um dos principais obstáculos do consumo contemporâneo. A abundância de opções, embora geralmente vista como positiva, pode gerar ansiedade, arrependimento, compulsão e insatisfação. Nesse contexto, a mídia física, por seu turno, estabelece um ambiente mais contido e narrativamente estruturado, em que cada experiência tem um início, meio e fim claros. Ela propõe uma estética da contenção, em oposição à lógica da expansão infinita.

Dimensão Comunitária

Outro ponto que o digital não consegue substituir é o aspecto coletivo que vemos muito em Sebos, feiras, trocas entre amigos, tudo isso cria comunidade. Quando alguém empresta um livro com anotações ou um CD riscado, entrega também parte da própria história. O objeto carrega marcas de trajetórias diferentes e, quando circula, acumula camadas de sentido.

Já no digital, por mais conectado que seja, a experiência tende a ser solitária. Você ouve, assiste ou lê, mas sem vestígios físicos para partilhar. A convivência se dá por algoritmos compartilhados, e o físico, ao contrário, gera conversa, memória compartilhada e até vínculos sociais.

Eu mesmo já fiz muitas amizades assim, por meio de sebos e feiras.

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Foto: Marcio D’Avila

Convivência e Equilíbrio

Mas isso não significa que precisamos rejeitar o digital. Ele democratizou o acesso e trouxe comodidade, isso é inegável, mas a mídia física pode atuar como contraponto. Muita gente (eu incluso) já vive nesse equilíbrio.

Ouve música no streaming diariamente, mas compra em vinil os álbuns que considera especiais ou até mesmo aqueles que coleciona, pra ouvir em um dia de sexta feira pra relaxar depois do trabalho; lê em e-books pela praticidade, mas guarda na estante os livros que quer revisitar ou os grandes nomes da literatura que pretende ler pela primeira vez, e isso precisa ser especial. Entre muitos e outros exemplos que eu poderia citar.

Nesse sentido, o digital funciona como fluxo, e o físico como presença. E cada vez mais vemos que a nova geração está se rendendo a essas escolhas.

Em 2023, no Brasil, os vinis ultrapassaram CDs e DVDs em faturamento pela primeira vez em décadas, movimentando cerca de R$ 11 milhões — mais que o dobro do ano anterior e mais de quinze vezes o registrado em 2019, segundo a Associated Press (AP News, 2023).

O Que Fica

Em resumo, ouvir o Álbum Branco em vinil me fez perceber que a diferença não está só no som, mas na forma de viver a experiência. O físico nos força a desacelerar e a estar mais presentes em nossas ações.

Os Beatles em 1968, durante as gravações do “White Album”. (Foto: Linda McCartney)

O digital trouxe acesso e praticidade, mas também criou pressa e distração, e o físico, ao contrário, devolve peso às escolhas. No fim, não se trata de escolher entre um ou outro, mas de entender que há coisas que merecem ser vividas devagar onde corpo, mente e alma estejam presentes.

Você não vai comprar aquele álbum horrível da Katy Perry só porque talvez seja a experiência certa. O que é ruim talvez continue ruim, mas estamos falando de elevar a experiência daquilo que já gostamos.

Precisamos dar espaço a arte para que ela deixe de ser só consumo e vire experiência.

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